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Encantado, 02 de agosto de 2021.
Interessado: Poder Legislativo de Encantado
Consulente: Presidente da Câmara de Vereadores
Assunto: Projeto de Lei 011/2021 – origem legislativa
EMENTA: PROJETO DE LEI QUE DISPÕE SOBRE A DIVULGAÇÃO DA LISTAGEM DE MEDICAMENTOS DISPONÍVEIS E EM FALTA NA REDE MUNICIPAL DE SAÚDE E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS. INTERESSE LOCAL. POSSIBILIDADE DE TRAMITAÇÃO DA MATÉRIA, APESAR DE NÃO HAVER TOTAL SEGURANÇA JURÍDICA EM CASO DE SUA APROVAÇÃO, DIANTE DA DIVERGENTE JURISPRUDÊNCIA.
Exma. Presidente.
Cuida-se de consulta, acerca do Projeto de Lei 011/2021 de origem legislativa que Institui a divulgação da listagem dos medicamentos disponíveis e em falta na rede pública municipal de Saúde.
Em suma, o relatório.
A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:
Art. 30. Compete aos Municípios:
I - legislar sobre assuntos de interesse local;
II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;
IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;
V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;
VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)
VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;
VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;
IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.
Por sua vez, o Regimento Interno – Resolução Legislativa no 10/2003 – trata das atribuições do Poder Legislativo, em especial em seu artigo 2º.
Alexandre de Moraes afirma que "interesse local refere-se aos interesses que disserem respeito mais diretamente às necessidades imediatas do município, mesmo que acabem gerando reflexos no interesse regional (Estados) ou geral (União)" (in Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 9ª ed., São Paulo: Atlas, 2013, p. 740).
No caso concreto, o projeto de lei cuida de interesse local.
A medida pretendida por meio do Projeto de Lei em análise se insere, efetivamente, na definição de interesse local. Isso porque, além de veicular matéria de competência material do Município (artigo 23, II, CF), não atrelada às competências legislativas privativas da União (artigo 22, CF), a proposta estabelece um novo instrumento de garantia dos direitos à publicidade e à transparência da gestão pública, diretrizes que possuem amparo constitucional nos princípios da administração pública (artigo 37, caput, CF/88).
Quanto à matéria de fundo, não há qualquer violação ao conteúdo material da CF/88 e da CE/RS. A Constituição Federal, no artigo 196, prevê: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” O artigo 198, por sua vez, estabelece que os serviços de saúde se desenvolvem por meio de um sistema público organizado e mantido com recursos do Poder Público.
Percebe-se, pois, que o Projeto de Lei em discussão está em consonância com o regramento constitucional a respeito do direito à saúde, especialmente consagrado no artigo 6º como direito fundamental e, como tal, possui aplicabilidade imediata, nos termos do § 1º do artigo 5º da CF.
Ainda, a proposta é materialmente compatível com a disciplina constitucional dos princípios da administração pública, os quais estão previstos genericamente no artigo 37, caput, da CF/88: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte”. Ou seja, desde a promulgação da CF/88, o princípio da publicidade é aplicado no âmbito da Administração Pública, pautando toda a atividade pública.
Desse modo, não há dúvidas de que todas as medidas políticas que, de algum modo, impliquem a obrigação de assegurar publicidade à atividade pública possuem respaldo constitucional. Além disso, a determinação que se pretende instituir também encontra amparo na legislação federal. A Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 e Lei nº 14.129/2021 regularam o direito de acesso a informações previsto no artigo 5º, inciso XXXIII, da CF/88, disciplinando os procedimentos a serem observados pela União, Estados, DF e Municípios para a garantia dessa prerrogativa pública.
Destarte, a proposição está apropriada quanto à matéria de fundo.
No que tange a iniciativa para a deflagração do processo legislativo, em regra, é comum. A iniciativa privativa, por ser uma norma de natureza restritiva, é exceção, sendo “válida, nesse ponto, a lição da hermenêutica clássica, segundo a qual as exceções devem ser interpretadas de forma restritiva.” (CAVALCANTE FILHO, 2013, p. 12).
Assim, as hipóteses de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo são apenas e tão somente aquelas previstas no texto constitucional: artigos 93, caput; 96, I e II; 127, § 2º; 51, IV; 52, XIII; 73, caput c/c 96; 61, § 1º; 165, I a III. Inclusive, o STF já decidiu não ser possível interpretação ampliativa quanto às regras de iniciativa parlamentar:
DECISÃO RECURSO EXTRAORDINÁRIO – LEI MUNICIPAL – INICIATIVA – SEPARAÇÃO DOS PODERES – PRECEDENTES DO PLENÁRIO – PROVIMENTO. [...] 2. Assiste razão ao recorrente. Os pronunciamentos do Supremo são reiterados no sentido de que a interpretação das regras alusivas à reserva de iniciativa para processo legislativo submetem-se a critérios de direito estrito, sem margem para ampliação das situações constitucionalmente previstas – medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade nº 724/RS, relator o ministro Celso de Mello, acórdão publicado no Diário da Justiça em 27 de abril de 2001, ação direta de inconstitucionalidade nº 2.464/AP, relatora a ministra Ellen Gracie, acórdão publicado no Diário da Justiça em 25 de maio de 2007, e ação direta de inconstitucionalidade nº 3.394/AM, relator o ministro Eros Grau, acórdão publicado no Diário da Justiça em 24 de agosto de 2007. Confiram a ementa do acórdão formalizado pelo Colegiado Maior nesse último processo: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGOS 1º, 2º E 3º DA LEI N. 50, DE 25 DE MAIO DE 2.004, DO ESTADO DO AMAZONAS. TESTE DE MATERNIDADE E PATERNIDADE. REALIZAÇÃO GRATUITA. EFETIVAÇÃO DO DIREITO À ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR QUE CRIA DESPESA PARA O ESTADO-MEMBRO. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL NÃO ACOLHIDA. CONCESSÃO DEFINITIVA DO BENEFÍCIO DA ASSISTÊNCIA JUDICÁRIA GRATUITA. QUESTÃO DE ÍNDOLE PROCESSUAL. INCONSTITUCIONALIDADE DO INCISO I DO ARTIGO 2º. SUCUMBÊNCIA NA AÇÃO INVESTIGATÓRIA. PERDA DO BENEFÍCIO DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. INCONSTITUCIONALIDADE DO INCISO III DO ARTIGO 2º. FIXAÇÃO DE PRAZO PARA CUMPRIMENTO DA DECISÃO JUDICIAL QUE DETERMINAR O RESSARCIMENTO DAS DESPESAS REALIZADAS PELO ESTADO-MEMBRO. INCONSTITUCIONALIDADE DO INCISO IV DO ARTIGO 2º. AFRONTA AO DISPOSTO NO ARTIGO 61, § 1º, INCISO II, ALÍNEA "E", E NO ARTIGO 5º, INCISO LXXIV, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL . 1. Ao contrário do afirmado pelo requerente, a lei atacada não cria ou estrutura qualquer órgão da Administração Pública local. Não procede a alegação de que qualquer projeto de lei que crie despesa só poderá ser proposto pelo Chefe do Executivo. As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo. Precedentes. […] 7. Ação direta julgada parcialmente procedente para declarar inconstitucionais os incisos I, III e IV, do artigo 2º, bem como a expressão "no prazo de sessenta dias a contar da sua publicação", constante do caput do artigo 3º da Lei n. 50/04 do Estado do Amazonas. A reserva de iniciativa material é exceção e surge apenas quando presente a necessidade de se preservar o ideal de independência entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Incumbe ao município complementar a legislação relativa à proteção do meio ambiente, pelo qual respondem indistintamente as instâncias políticas representativas dos interesses locais. Verificada a ausência de proposição normativa tendente a suprimir ou limitar as atribuições essenciais do Chefe do Executivo no desempenho da função de gestor superior da Administração, descabe cogitar de vício formal de lei resultante de iniciativa parlamentar. 3. Ante os precedentes, provejo o extraordinário para assentar a constitucionalidade da Lei nº 3.338/2009, do Município de Cubatão/SP. 4. Publiquem. (RE 729729, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 13/12/2016, publicado em DJe-017 DIVULG 31/01/2017 PUBLIC 01/02/2017).
O rol de iniciativas privativas do Chefe do Executivo, portanto, é estrito e não admite interpretação ampliativa; do contrário, ocorreria subversão e/ou perturbação do esquema organizatório funcional estabelecido na CF, base do princípio da conformidade funcional, que rege a interpretação dos dispositivos constitucionais. Em palavras mais simples, o intérprete da Constituição não pode chegar a uma conclusão que altere “a repartição de funções constitucionalmente estabelecidas pelo constituinte originário, como é o caso da separação de poderes” (LENZA, 2011, p. 148).
O artigo 61, § 1º, da CF/88, assim como o artigo 60, II, “d”, da CE/RS não preveem restrição expressa à deflagração de projeto de lei, por parlamentar, estabelecendo a obrigação de o Poder Público assegurar publicidade às listagens de medicamentos disponíveis e em falta na rede pública de saúde.
Nesta senda, entendo que não há vício de iniciativa.
Todavia, informo que não desconheço posicionamentos divergentes entre os diferentes tribunais, alguns declarando a constitucionalidade da lei, outros exatamente o contrário, sempre à luz da tormentosa questão da iniciativa para deflagrar o processo legislativo.
Veja-se:
MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - MUNICÍPIO DE LAGOA SANTA - LEI Nº 3.535/14 - DIVULGAÇÃO DE LISTA DOS MEDICAMENTOS FORNECIDOS DE FORMA GRATUITA - INICIATIVA DO PODER LEGISLATIVO - VÍCIO FORMAL NÃO VISLUMBRADO - PERIGO DE DANO - AUSÊNCIA - REQUISITOS LEGAIS E ESPECÍFICOS INCORRRENTES- LIMINAR INDEFERIDA. - A Lei Municipal que prevê a divulgação da lista de medicamentos fornecidos gratuitamente pelo município e a forma de aquisição traduz, aparentemente, medida consentânea como o princípio da transparência e da publicidade, garantindo o acesso dos administrados a informação pública de interesse geral, não estando evidenciado o fumus boni iuris. - Inexiste periculum in mora se a eficácia da Lei depende, antes, de regulamentação pelo Poder Executivo. - Ausentes os requisitos autorizadores, não há como se deferida medida liminar para que sejam imediatamente suspensos os efeitos do ato normativo impugnado. - Medida cautelar indeferida. (TJ-MG - Ação Direta Inconst: 10000140794801000 MG, Relator: Mariângela Meyer, Data de Julgamento: 27/05/2015, Órgão Especial / ÓRGÃO ESPECIAL, Data de Publicação: 03/06/2015)
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 4.581⁄2016, DO MUNICÍPIO DE SERRA. OBRIGATORIEDADE DA PUBLICAÇÃO, EM SÍTIO ELETRÔNICO OFICIAL, DAS LISTAS DE PACIENTES QUE AGUARDAM CONSULTAS, EXAMES E INTERVENÇÕES CIRÚRGICAS NOS ESTABELECIMENTOS DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL. VÍCIO NO PROCESSO LEGISLATIVO NÃO CARACTERIZADO. PUBLICIDADE E TRANSPARÊNCIA DOS ATOS. INICIATIVA CONCORRENTE. PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE. I - Não se presume a reserva de iniciativa, a qual deve resultar – em face do seu caráter excepcional – de expressa previsão inscrita no próprio texto da Constituição, que define, de modo taxativo, em catálogo "numerus clausus", as hipóteses em que essa cláusula de privatividade regerá a instauração do processo de formação das leis. II - A lei cuja constitucionalidade é questionada se enquadra numa salutar contextura de aprimoramento da transparência das atividades administrativas, reafirmando e cumprindo o princípio constitucional da publicidade da administração pública, não se tratando, portanto, de matéria de iniciativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo, mas de iniciativa concorrente. III - O comando legal ora atacado nada mais fez do que determinar a divulgação de informação pública relevante com claro intuito de aperfeiçoar a fiscalização e o controle sociais sobre o atendimento à saúde, bem como de garantir maior respeito às listas de espera de pacientes que aguardam por consultas, exames e cirurgias na rede pública de saúde municipal, desiderato que está em plena sintonia com o art. 32 da Constituição Estadual. IV - Se o Município já possui página própria na rede mundial de computadores, a qual requer permanente atualização e manutenção, serviços para os quais certamente funcionários já foram designados, não se vislumbra o advento de nova despesa capaz de impactar os cofres municipais. V - Pedido julgado improcedente. (TJ-ES - ADI: 00127288420178080000, Relator: JORGE DO NASCIMENTO VIANA, Data de Julgamento: 14/09/2017, TRIBUNAL PLENO, Data de Publicação: 22/09/2017).
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE ESTEIO. LEI MUNICIPAL N.º 2.976/1999. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. LEI DE INICIATIVA LEGISLATIVA DISPONDO SOBRE OBRIGAÇÃO DO EXECUTIVO MUNICIPAL RELACIONAR E PUBLICAR LISTA DOS MEDICAMENTOS ADQUIRIDOS PARA DISTRIBUIÇÃO. INICIATIVA PRIVATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. VIOLAÇÃO AOS ARTS. 8º, 10, 60, II, ALÍNEA D E 82, VII, TODOS DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. 1) - Padece de vício de iniciativa, lei que determina condutas administrativas próprias da organização do Executivo dispondo sobre as atribuições das Secretarias Municipais e dos demais órgãos da Administração Pública municipal. 2) - Padece de vício formal e material a Lei Municipal n.º 2.976/1999, de iniciativa Legislativa que dispõe sobre o dever do Legislativo relacionar, mensalmente, todos os medicamentos adquiridos para distribuição gratuita às famílias carentes e o dever de publicação e de afixação da relação no Hospital São Camilo, na Secretaria Municipal da Saúde, Meio Ambiente e Ação Social, nos Postos de Saúde e na Câmara de Vereadores daquele Município, porquanto compete privativamente ao chefe do Poder Executivo. AÇÃO PROCEDENTE. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70013110796, Tribunal Pleno, TJRS, Relator: Wellington Pacheco Barros, Julgado em 25/09/2006)
Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das comissões e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, esta assessoria jurídica opina pela possibilidade de tramitação da matéria, apesar de não haver total segurança jurídica em caso de sua aprovação, diante da divergente jurisprudência.
São as informações que julgo ser pertinente à consulta formulada.
À apreciação de Vossa Excelência.
WAGNER VIDAL – Assessor Jurídico
OAB/RS 68.226